06.05.13

De palavras, de tempo e de tempero


Ainda que falte assunto, ainda que faltem as palavras, não poderiam faltar provocações. Se a provocação acontece, tudo pode acontecer. Trata-se de um domingo cinzento, sem vontade de palavra, com um certo peso no peito, alguma frustração ou tristeza de não sei bem o quê. E era preciso escrever.  Já me achava entre duas escritas alinhavadas, mas não haveria de ser nenhuma delas.

Então resolvi adiar a escrita e voltar à fase da provocação, que sempre antecede à escrita, normalmente com leitura ou música, ou as duas coisas. Mas hoje não deu. Era preciso uma outra raiz bem funda, que sempre me revela muito de mim, de minha história familiar, de aconchegos, de sentidos e de sensações milenares que não consigo explicar e nas quais me perco em divagações, em aromas que contam histórias, em sementes e grãos que se fundem ao tempo de cultivo até chegar às mãos transformados em pó, e desse pó vai ocorrer a transformação, o milagre da mistura que revela a densidade possível da massa, que não é apenas massa, mas que tem um sabor, ou muitos sabores. O líquido quente que escorre e fumega, parecendo lágrimas de puro sal, embaçando a visão; o óleo pegajoso que flutua, teimoso, mas com jeitinho se funde ao todo; a nuvem de vapor que aquece e exala cheiro bom, adocicado, profundo, como um afago;  a espera do tempo necessário para que o fogo faça a sua parte, corando a mistura, tal qual a face que toma outros tons à medida do que sente.

As medidas e intuições vão tecendo as intenções, enquanto o tempo passa, construindo o grau de memória, numa fusão de saberes que se integram às lembranças afetivas, aos sabores, ao toque de carinho das mãos que engendraram o gosto e o gozo pelo bocado de alimento que se leva pra dentro de si e aquece de dentro pra fora. O resto quem faz é o tempo, que guarda no inconsciente emocional aquele afago tão completo.

Passei o domingo cinzento no melhor lugar da minha casa, o lugar de onde exala muito do que tenho a dar a quem vive comigo. Mergulhei minhas mãos na massa, triturei, refoguei, cortei, juntei, misturei, senti, pensei, imaginei, refleti, lembrei… meus olhos arderam, minhas mãos se aqueceram ao calor do fogo. Quantas histórias ouvi de minha mãe aquecidas pelo calor do fogo, quanto de minhas avós tenho na memória ao pé do fogão. Temperos de vida que dão sabor ao tempo que passamos com as pessoas mais próximas, aquelas que não recebemos na sala e sim na cozinha.

Sempre tenho na lembrança, e preciso rever de tempos em tempos, um filme chamado “Como água para chocolate”. Uma história de amor que ultrapassa o tempo, e que precisa esperar o tempo dos outros pra virar labareda. Uma história de amor cuja trama se tece em sabores e sentimentos, desenhados pelas mãos que misturam os ingredientes, pela intuição que desenvolve o tempero, a cura, a dor, a aflição, a euforia e tudo que se sinta, e tudo se pode sentir pelo alimento, fruto dessa combinação.

O alimento é contagiante, é provocante, é surpreendente. Não se trata apenas de matar a fome orgânica, mas de provocar outras fomes, de temperar a vida, cada momento do tempo que se vive, acrescentar aroma e sabor à memória da nossa passagem pelo convívio de outras pessoas e de revelar a elas quanto de amor é a medida nessa receita que se fabrica a cada dia. E essa é a provocação, e eis o texto, fruto de palavras, de tempo e de tempero.
“O ruim de se chorar ao picar cebola não é o fato de chorar, mas sim que às vezes não se consegue parar.”  (do filme “Como água para chocolate”)
Escrito por Martinha Vieira, com mãos cheirando a tempero.

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