Entre o público e o privado: fronteiras entre a espetacularização e a vida
O artigo 5 da Constituição Federal de 88 declara que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza…” e nos parágrafos IX e X, respectivamente, encontramos as seguintes descrições: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” e “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
De modo geral, encontramos três afirmações: igualdade entre os diferentes, liberdade de expressão e vida privada como um bem inviolável. Em torno desses três princípios, contraditórios, pois não podem ser lidos no plano de um direito abstrato, mas interessantes – dizem respeito a todos os que nos preocupamos com o futuro das informações relacionadas à nossa vida –, encontramos uma série de reportagens que foram veiculadas nos últimas dias, cujo tema foi/é os limites da privatividade da vida e a(s) questão(ões) de fundo é(são): pode um escritor e pesquisador ter como objeto da sua pesquisa uma vida que ainda não chegou ao término ou a história de alguém que, por mais que já esteja falecido, tenha tido relações diretas e íntimas com os que ainda estão vivos? Caso a resposta seja positiva, essa pesquisa poderia ocorrer sem a autorização das partes interessadas? Pode uma personagem pública negar do público o conhecimento dos pormenores da sua vida?
Pois bem, os posicionamentos são variados, mas, contentemo-nos a refletir sobre dois deles: o primeiro, da ala dos “sou a favor”, diz que o principio constitucional da liberdade de expressão e da produção intelectual livre deve ser garantido a todo e qualquer custo, correndo-se o risco, nos casos em que não se respeite esse princípio, de abrirmos as portas, na casa da democracia, para o retorno ao período sombrio que viveu o nosso país: ditatura, controle das informações, estado de exceção, manipulação das informações etc; o segundo grupo, dos “sou totalmente contra”, afirma que o princípio constitucional da inviolabilidade da intimidade e da vida privada não pode ser quebrado sem a autorização das partes envolvidas, afinal, as histórias sairiam da esfera privada e ganhariam o espaço das prateleiras das grandes livrarias de todo país, expondo a vida não apenas do biografado, mas dos familiares, entes queridos etc.
De um lado, medo da ditadura e do cerceamento da liberdade; de outro, medo também de uma “ditadura”, mas da informação e da espetacularização que, no corpo de um bom livro e nas mãos de um escritor habilidoso, pode tornar-se um excelente caminho de consumo. Não nos cabe aqui, até porque o espaço é breve, a defesa de quaisquer partes. Mas, essa discussão nos abre um campo reflexivo interessante para pensarmos as “fronteiras” entre o “público” e o “privado” e o conceito de “espetacularização” da vida que a cada dia ganha uma roupagem mais agradável e vendável.
Do ponto de vista histórico, a biografia sempre ocupou um lugar fundamental na cultura, especialmente na relação dos que ingressam no mundo e dele devem se apropriar. Na verdade, antes da “escrita”, tínhamos uma espécie de “biophonia”, ou narrativa que atualizava a vida daquele que estava sendo relembrado, como, por exemplo, nas grandes obras homéricas, Odisseia e Ilíada. Narrar os grandes feitos individuais, na verdade, não revelava apenas a importância de um heroísmo narcísico, mas o grande evento da cultura que, por ser comum, era pública. Movimento dialético: a constância do habitus permite e garante a historicidade do ethos. Ou seja, as ações do indivíduo tornado herói são importantes, nos permitem conhecer a história do nosso povo, nos inspira ao autoconhecimento. Mas, apenas e somente apenas naquilo que diz respeito aos aspectos públicos da vida do “herói”. Surge, é claro, um problema: quais são as fronteiras entre o público e o privado? Elas de fato existem?
O século XX assiste o desmoronamento dessas fronteiras entre essas duas esferas e o crescente fascínio e curiosidade pelas dimensões obscuras e “sigilosas” da existência. Um exemplo disso são os reality shows. Não é novidade que os seres humanos tomam banho, cometem traições, carregam a inveja dentro de si, o orgulho, o desejo, o ódio, a futilidade…Mas, a novidade consiste no desejo incontrolável de enxergar aquilo que ninguém pode ver. Como se o Pay per view nos desse uma exclusividade tão ampla que pudéssemos ler até o que passa na mente dos nossos ídolos, nos fornecesse o ingresso para um teatro de intimidades que, por mais encenadas que sejam, falam da vida privada em “tempo real”. A brincadeira da criança que procura adivinhar o que o colega está pensando pode, na nossa sociedade, ser comprada e nos dar a consequente sensação de que estamos desvelando o que o outro pensa e o nexo lógico que liga o seu pensamento à sua ação, a sua ação à sua história. Vários são os motivos, mas o principal deles é que as nossas ações, sendo supérfluas, tornam-se óbvias a um grau absurdo.
Outro elemento envolvido na polêmica biográfica diz respeito à necessidade de distanciamento entre a vida (existir de fato) e a leitura que fazemos dela ( hermenêutica). Todos já tivemos a oportunidade de ter em mãos uma das várias biografias de figuras contemporâneas que transitam pelos veículos de comunicação: atores, cantores, atletas, empresários…e a lógica, infelizmente, é óbvia: o sujeito venceu na vida, escrevamos sobre ele; o sujeito perdeu na vida, escrevamos sobre ele; o sujeito recuperou-se de uma doença, também escrevamos sobre…A questão que nos surge: para esse tipo de informação haveria necessidade de leitura de um livro? Isso não seria óbvio? Seres humanos ganham e fracassam todos os dias; morrem, recebem notícias trágicas, se alegram…
Não queremos, de modo algum, defender que a biografia não é importante. Ou, ao contrário, que ela perdeu uma essência que lhe dava, no passado, mais seriedade. A questão é bem outra: haveria, neste caso, uma distinção importante entre a biografia e o diário? Pensamos que sim. Quando o diário passa a ter uma importância pública? Não sabemos nem nos cabe responder.
O fato é que, para alimentarmos a sociedade do espetáculo e da aparência, utilizamos os veículos mais sofisticados e argumentamos, muitas vezes, com tanta veemência, que acabamos por vestir o banal e o corriqueiro com roupas de gala, tornando a besteira mais sem sentido no grande evento que está prestes a marcar a vida da humanidade e, caso você não leia, estará fadado, também, ao anonimato.
Bom, o assunto é polêmico e não há espaço para grandes conclusões…Qual é o seu posicionamento, amigo leitor?
Mayco Delavy