01.07.11

Ética na tevê e no cinema – Um artigo que deveria ter sido escrito há 16 anos

* Este artigo contém spoiler do filme Quiz Show – A Verdade dos Bastidores

Eu sofro de duas doenças severas, que perturbam a minha esposa. Uma delas é que eu não consigo lidar com filmes pela metade. Quando começo a ver um filme, mesmo um bem ruim, eu quero ver até o final. Quero saber o que aconteceu com aqueles personagens, o que foi decidido de fazer naquela história. Considerando que a porcentagem de filmes ruins frente à dos bons é muito superior, vocês podem imaginar que isso não é bom. A segunda doença é que eu assisto filmes de novo. E de novo. E de novo. Não me incomoda em nada saber as falas, relembrar dos movimentos de cabeça, saber a música que vai entrar naquela cena. Acho que as duas doenças são relacionadas e, talvez, exista um único remédio que dê cabo das duas.

Exercitando essa doença esta semana, assisti novamente Quiz Show – A Verdade dos Bastidores (1995), um filme dirigido por Robert Redford que trata sobre um escândalo da tevê americana. Um programa semanal de perguntas e respostas, chamado Twenty-One, fez imenso sucesso na década de 50. Uma comissão do congresso americano (estou oficialmente recusando escrever a palavra “congresso” com letra maiúscula na frente, devido a vergonha que sinto da atuação política no meu país) começa a investigar o fato de que  os participantes do programa sabiam antecipadamente quais perguntas seriam feitas e suas respostas, concluindo então que o público americano era enganado semanalmente, criando falsas expectativas sobre a competição.

A estrela do escândalo foi um intelectual americano chamado Charles Van Doren. Durante 14 semanas ele venceu o concurso televisivo e tornou-se um exemplo para os americanos sobre o que o estudo poderia fazer de bom por você. O filme mostra o quanto foi importante a confissão de que Charles, assim como todos os outros participantes, recebia as perguntas e respostas de seus programas. A intenção de um dos agentes da comissão do congresso americano era mostrar o envolvimento da rede de tevê NBC e de seu patrocinador neste esquema de fraude. Entretanto, a comissão só conseguiu comprovar a fraude dos participantes e dos produtores do programa, inocentando a rede e o patrocinador.

Terminado o filme bateu uma curiosidade, uma das derivações das doenças que mencionei no primeiro parágrafo. Como anda o senhor Charles Van Doren nos dias de hoje? O que ele faz desde que passou por esse escândalo? Ainda bem que, para tudo nesta vida, existe uma palavra chave no Google. Descobri que o professor ficou um pouco mais recluso, trabalhou para a antecessora do Google – a Enciclopédia Britânica -, voltou a dar aulas algum tempo depois, e quase sempre se recusou a comentar sobre o momento infame de sua vida. Mas, em 2008, ele publicou um artigo na revista The New Yorker na qual ele comenta vários equívocos do filme. Inverdades sobre a sua vida amorosa, sua relação com o representante do congresso americano, sobre o fato de que um letreiro, ao final do filme, afirma que ele nunca ensinou novamente.

O filme, que critica a inverdade da televisão, usa do mesmo artifício para entreter seus espectadores. Por um momento, me senti enganado, como quem lê um tratado sobre as tristezas da guerra e descobre que foi escrito por alguém chamado Adolf H., que está lançando seu segundo livro. O argumento, tanto para o programa de tevê quanto para o filme, são absolutamente o mesmo: licença poética. Como estamos falando de entretenimento, o objetivo aqui é divertir a platéia. Se é verdade? Ah, isso é outra coisa! Filmes e tevê são entretenimento, 99,9% do tempo. Mesmo pessoas que fazem filmes ditos sérios, documentários, são frequentemente acusados de dourar a pílula para alguns e atacar com força desnecessário outros. Na tevê, até os noticiários são tratados como shows de vaudeville, em que a notícia ruim é seguida de um repórter feliz que fala do que é melhor comer, vestir, comprar, usar, etc.

É nesse ponto que mora a parte ruim das minhas doenças. Afinal, se tudo é tão falso assim, estou em contato com um mundo ilusivo com tanta frequência que posso começar a acreditar piamente em finais felizes. Mundos em que a mocinha e o mocinho ficam juntos, em que intelectuais são sempre brilhantes e onde a palavra congresso possa voltar a ser escrita com letra maiúscula.

Andrei Moscheto

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