30.05.13

Falta-me o título… Ou: Lembranças de viagem II


Junho de 2006: uma viagem de ônibus de Curitiba a Rio Branco… Um congresso de Geografia iria acontecer na capital acreana e fomos, 39 colegas de curso, 2 motoristas e eu, observando a paisagem que segue nesses quase 3700 km.

As lembranças são muitas daqueles Brasis que ainda não tinha tido a oportunidade de visitar, mas quero me ater a duas:

A primeira, estávamos no ‘meio do nada e de lugar nenhum’, no estado do Mato Grosso onde a nossa companhia de beira de estrada era limitada a grandes propriedades de soja… Por estar nos bancos dianteiros e olhando a estrada por demasiado tempo, em determinado momento pensei ver uma miragem, pois no horizonte surgiam bandeiras vermelhas e algumas pessoas caminhando lentamente. Cerca de segundos depois eles passaram por nós, cerca de 30 famílias (salvo erro) do MST caminhando, reclamando e pedindo terras em meio a tanta que os circundava… Eu não tinha máquina fotográfica na época e aquelas 41 pessoas no ônibus são as únicas que compartilham comigo essa lembrança.

A segunda, também muito especial, também bastante poética na visão da que vos escreve, é de uma tapera… No estado de Rondônia, na beira da estrada, tinha uma tapera… Essa tapera que na beira da estrada vendia um “combo” café+pão assado na hora+margarina por simbólicos R$0,60. No comando do lugar uma senhora que imediatamente me fez pensar em um poema de Cora Coralina que diz assim:

Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, pedra de anil.
Sua coroa verde de São-Caetano.
Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa, de chinelinha, e filharada.
Vive dentro de mim a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha… tão desprezada, tão murmurada…
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida – a vida mera das obscuras!

– Todas as Vidas (Cora Coralina)

Há muitas outras lembranças daquelas terras de povo acolhedor, mas essas duas são diferentes. A primeira pelo caráter inesperado e a impressão quase surreal do encontro. A segunda pela aparência cabocla e o aspecto materno que ela apresentava, além da alegria de servir tantas pessoas ao mesmo tempo… Sempre me pergunto se ela ainda anda por lá e se aquele grupo de famílias conseguiu algo e me inspiro na possibilidade de voltar…

E você? Qual lembrança de viagem te inspira em voltar?

*Texto dedicado a Luciana Podlasek e Mauro Braga, por razões bastante óbvias…

Rafaela Dalbem

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